A EXECUÇÃO DOS DÉBITOS JUDICIAIS DAS EMPRESAS ESTATAIS – SUBMISSÃO AO REGIME DOS PRECATÓRIOS PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REITERAÇÃO DOS ASPECTOS JURÍDICOS DO TEMA PELO STF.

André Luiz de Andrade Carneiro[1]

  1.       INTRODUÇÃO AO TEMA.

Não é de hoje que se estabeleceu no seio da máxima Corte de Justiça do país o entendimento segundo o qual, em relação às empresas estatais prestadoras de serviço público, a execução de débitos oriundos de sentenças judiciais transitadas em julgado não se faria da mesma forma que ocorre com as pessoas jurídicas do setor privado, ou seja, pelos meios executivos comuns dispostos no diploma processual civil.

Realmente, ainda que possuam natureza jurídica de direito privado, as denominadas “estatais” (Sociedades de Economia Mista e Empresas Públicas), desde que presentes algumas características próprias em sua estrutura e à exemplo do que acontece com a Fazenda Pública, não deveriam se submeter a atos executivos comuns de constrição tais como: bloqueios financeiros, penhoras, arrestos, sequestros etc.

Pelo menos desde o julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 220.906  e 225.011 (STF, DJe 16.11.2000 e 19.12.2002, respectivamente), quando apreciou a situação concreta dos Correios (ECT), o Pretório Excelso enfrentou com alguma profundidade o tema, fixando as premissas básicas quanto à matéria em foco, de modo a deixar claro que, observados os requisitos – os quais foram ampliados em julgados posteriores – a execução destas entidades da Administração Pública Indireta deveria observar a sistemática do regime de precatórios judiciais prevista no art. 100 da Lei Fundamental de 1988, sob pena de violação de diversas normas e princípios de índole constitucional, notadamente os relacionados ao sistema financeiro e orçamentário, bem como a harmonia e independência entre os poderes.

Em que pese a clareza deste posicionamento, que já persiste há mais de duas décadas, o que se tem visto, na prática do dia a dia forense, é a constante prolação de decisões judiciais, nas mais diversas instâncias (em primeiro ou segundo grau) e esferas de jurisdição (na justiça estadual e na federal, principalmente a trabalhista), que insistem em não seguir o caminho trilhado pelo Eg. STF, de forma a causar inúmeros prejuízos e inconvenientes de toda a sorte à gestão das estatais e ensejar, por consequência, uma profusão de medidas judiciais visando à necessária correção do rumo, abarrotando-se ainda mais o Judiciário com os mais diversos expedientes e recursos (exceções de pré-executividade, embargos à execução, impugnações, apelações, agravos de petição etc), inclusive o próprio Supremo, com o ajuizamento de ADPF’s – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – e Reclamações Constitucionais, estas com vistas justamente a restaurar a autoridade das decisões do Pretório Excelso.

Tal comportamento, proveniente de alguns órgãos do Poder Judiciário, como dito, vem sendo alvo, portanto, de diversas medidas saneadoras promovidas junto ao Supremo Tribunal Federal que, por meio de reiterados e recentes julgados, vem ratificando o entendimento já consolidado no âmbito daquela Corte de Justiça, de modo que surge, assim, um terreno firme, seguro e concreto, apto a nortear a Administração Pública como um todo, fazendo emergir a tão almejada segurança jurídica quanto à matéria.

O objetivo do presente trabalho é, pois, longe de pretender esgotar os vastos contornos da temática abordada – que são inúmeros -, apenas conferir os pressupostos que vêm sendo aferidos pelo Supremo Tribunal Federal, os quais servem para fins de não somente preservar a segurança jurídica na gestão das empresas estatais mas, principalmente, prestigiar normas e princípios elencados na Constituição da República Federal de 1988, no que buscaremos aqui também analisar, ainda que en passant, os mecanismos jurídico-processuais disponíveis aos agentes públicos para fins de correção de eventuais decisões judiciais contrárias.

  1. OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS ALINHADOS ACERCA DA MATÉRIA.

Para fins de adentrarmos no exame dos contornos jurídicos que se encontram em derredor da presente discussão, mister conhecer os pontos ou questões que suscitaram os debates mais aprofundados sobre o tema, notadamente as premissas que foram – e vêm sendo – levadas em consideração pela nossa Corte Suprema.

Pode-se afirmar que o cerne da controvérsia, inicialmente, girou em torno da necessária distinção que se deve ter em mente acerca da essência da função desempenhada pelas empresas estatais (servindo a presente abordagem tanto para as Sociedades de Economia Mista como para as Empresas Públicas), na forma do quanto previsto pela própria Lei Maior.

De fato, é sabido que o regime das empresas estatais pode diferenciar se estivermos diante de entidade que explora diretamente atividade econômica, que deve necessariamente se submeter ao mesmo regime jurídico das empresas privadas não integrantes da Administração Pública (na forma do que dispõe o art. 173, §1º, inciso II da CF/88[2]) ou, na outra ponta, se trate de estatal que tenha por escopo a prestação do serviço público em sentido estrito, notadamente quando envolve atividade de natureza primária (própria de Estado), cuja disciplina é a constante do art. 175 da mesma Carta Magna[3].

Sobre os tipos de empresas públicas e sociedades de economia mista e seus respectivos regimes jurídicos, leciona o Prof. Celso Antônio Bandeira de Melo em sua sempre aplaudida obra:

Há, portanto, dois tipos fundamentais de empresas públicas e sociedades de economia mista: exploradoras de atividade econômica e prestadoras de serviços públicos. Seus regimes jurídicos não são, nem podem ser, idênticos, como procuramos demonstrar em outra oportunidade. No primeiro caso, é compreensível que o regime jurídico de tais pessoas seja o mais próximo possível daquele aplicável à generalidade das pessoas de Direito Privado. Seja pela natureza do objeto de sua ação, seja para prevenir que desfrutem de situação vantajosa em relação às empresas privadas – as quais cabe a senhoria no campo econômico -, compreende-se que estejam, em suas atuações, submetidas a uma disciplina bastante avizinhada da que regula as entidades particulares de fins empresariais. Daí haver o texto Constitucional estabelecido que tais hipóteses regular-se-ão pelo regime próprio das empresas privadas (art. 173, §1º, II). Advirta-se, apenas, que há um grande exagero nesta dicção da Lei Magna, pois ela mesma se encarrega de desmentir-se em inúmeros outros artigos, como além demonstrado. No segundo caso, quando concebidas para prestar serviços públicos ou desenvolver quaisquer atividades de índole pública propriamente (como promover a realização de obras públicas), é natural que sofram o influxo mais acentuado de princípios e regras de Direito Público, ajustados, portanto, aos resguardo de interesse desta índole.[4] (Destaque acrescido).

Na mesma esteira, os administrativistas Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino jogam luz sobre o tema ao delimitarem:

Porém, se é fato que os meios jurídicos pátrios admitiram, sem maiores contestações, essa possibilidade de empresas públicas e sociedades de economia mista serem criadas ora para atuar do domínio econômico em sentido estrito, ora como prestadoras de serviço público, também é verdade que, em atenção à diferença de tratamento que o ordenamento constitucional dispensa a cada uma dessas atividades, passaram a ser estremados variados aspectos referentes ao regime jurídico aplicável à entidade, conforme o seu objeto.[5]

Em que pese existam inúmeros pontos de convergência estre estas estatais, notadamente em relação à estrutura organizacional e principalmente por serem ambas espécie de entidades da Administração Pública Indireta com personalidade jurídica de direito privado, o objeto precípuo de cada uma a ser considerado, seja para o escopo de explorar diretamente atividade econômica seja para prestar serviço público próprio de Estado, é que vai definir os contornos de aplicação ou não dos precedentes jurisprudenciais ora em comento.

Isso porque um dos pontos que logo se percebe facilmente nos julgados da Corte Suprema diz respeito a esta exata distinção, não valendo a prerrogativa processual de sujeição ao regime de precatórios para as entidades da Administração Indireta que explorem diretamente atividade econômica (a exemplo de Instituições Financeiras), haja vista que, consoante o mandamento constitucional citado (art. 173, §1º, inciso II da CF/88), o regime jurídico a que se submetem estas deve ser necessariamente idêntico ao das empresas privadas, incluindo-se os meios de execução de suas dívidas judiciais, o que visa resguardar a isonomia e prestigiar o equilíbrio dos atores no mercado.

A seu turno, firmou-se o entendimento na instância extraordinária no sentido de que a percepção deveria ser outra se estivesse em discussão questão atinente a uma empresa estatal cujo objeto precípuo fosse a prestação de um serviço público dito primário, ou seja, próprio de Estado, como, v.g, ocorre com as entidades que cuidam do abastecimento de água e sistema de esgotamento sanitário ou de saneamento básico (RE 627.242, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator para o Acórdão Min. Roberto Barroso) ou mesmo responsável pelo sistema de transporte público ou de infraestrutura aeroportuária (RE 602.847, Rel. Min. Ayres Brito).

Outra circunstância exigida pela egrégia Casa de Justiça Constitucional é que o serviço público prestado pela estatal seja realizado em regime não concorrencial, vale dizer, em sistema de exclusividade, de monopólio, pois, se há caracterizada situação de concorrência no setor com serviços idênticos prestados por empresas privadas, vigoraria, então, a competitividade, não se justificando  – e até mesmo não se recomendando – a utilização da prerrogativa processual executiva em destaque, sob pena de criar-se violação à isonomia e distorção no sistema previsto pelo ordenamento constitucional.

Em abordagem precisa sobre o assunto, o Min. Carlos Veloso, em voto lapidar, trouxe a seguinte ponderação:

“Quer dizer, o art. 173 da CF está cuidando da hipótese em que o Estado esteja na condição de agente empresarial, isto é, esteja explorando, diretamente, atividade econômica em concorrência com a iniciativa privada. Os parágrafos, então, do citado art. 173 aplicam-se com observância do comando constante do caput. Se não houver concorrência – existindo monopólio, CF, art. 177 – não haverá aplicação do disposto no § 1º do mencionado art. 173” (RE 407.099, 2ª Turma, DJ 6.08.2004).

O ilustre publicista Ives Gandra Martins, há muito tempo, ainda que para efeito tributário, já alertava para a necessidade de se distinguir o regime aplicável às empresas estatais prestadoras de serviços públicos comuns daqueles prestados em regime de monopólio:

Por serem serviços públicos exclusivos, em regime semelhante aos serviços monopolizados, seu regime jurídico transcende os demais serviços públicos não exclusivos, próprios ou monopolizados, compondo a própria ação da Administração Pública, que, se indireta na formatação, é direta na atuação com tratamento constitucional tributário peculiar da Fazenda Pública.[6].

Vale registrar que tais temas vêm sendo enfrentados por ocasião do julgamento de diversas ações no âmbito do STF, merecendo destaque a recente apreciação da ADPF nº 387, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, restando assim ementado o precedente:

Arguição de descumprimento de preceito fundamental. 2. Ato lesivo fundado em decisões de primeiro e segundo graus do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região que determinaram bloqueio, penhora e liberação de valores oriundos da conta única do Estado do Piauí, para pagamento de verbas trabalhistas de empregados da Empresa de Gestão de Recursos do Estado do Piauí S/A (EMGERPI). 3. Conversão da análise do pedido de medida cautelar em julgamento de mérito. Ação devidamente instruída. Possibilidade. Precedentes. 4. É aplicável o regime dos precatórios às sociedades de economia mista prestadora de serviço próprio do Estado e de natureza não concorrencial. Precedentes. 5. Ofensa aos princípios constitucionais do sistema financeiro e orçamentário, em especial ao da legalidade orçamentária (art. 167, VI, da CF), aos princípios da independência e da harmonia entre os Poderes (at. 2º da CF) e ao regime constitucional dos precatórios (art. 100 da CF). 6. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente. (ADPF nº 387, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 25.10.2017 – grifo aditado).

A ementa acima reproduzida é de clareza inconteste, traçando alguns parâmetros que merecem a devida ponderação. Pois bem.

Primeiramente, é preciso que se diga que embora se tenha tratado, no caso concreto, de Sociedade de Economia Mista, já é posição pacífica que o entendimento serve, de igual modo, aos propósitos das Empresas Públicas pelos motivos de congruência já mencionado alhures, sendo todas consideradas “Estatais” em sentido amplo.

Em seguida, vale o registro de que embora no precedente tenha sido enfrentada situação de bloqueio da conta única do tesouro do Ente Público, os fundamentos elencados no decisum¸ como já elucidados em outras oportunidades pela mesma Corte, servem de igual modo à aplicação em hipóteses de contas de titularidade específica da própria estatal que venham a ser atingidas, mormente porque não é esta circunstância decisiva para o desiderato alcançado, mas sim outros valores e cânones de maior envergadura, como abordaremos adiante.

Noutro giro, percebe-se que o ponto fulcral levado em consideração pela Suprema Corte gira em torno de dois requisitos estruturais da estatal: i) prestar serviço público próprio do Estado e ii) possuir natureza não concorrencial.

Este caminho vem sendo cada vez mais fortalecido no âmbito do Eg. STF, tornando-se uma jurisprudência efetivamente consolidada, como é possível observar também da análise do RE 627.242, de relatoria do eminente Ministro Luís Roberto Barroso, que adota posição convergente, em que pese amplie o leque dos requisitos a serem observados, verbis:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. COMPANHIA ESTADUAL DE SANEAMENTO BÁSICO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. EXECUÇÃO PELO REGIME DE PRECATÓRIOS. 1. Embora, em regra, as empresas estatais estejam submetidas ao regime das pessoas jurídicas de direito privado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que entidade que presta serviços públicos essenciais de saneamento básico, sem que tenha ficado demonstrado nos autos se tratar de sociedade de economia mista ou empresa pública que competiria com pessoas jurídicas privadas ou que teria por objetivo primordial acumular patrimônio e distribuir lucros. Nessa hipótese, aplica-se o regime de precatórios” (RE 592.004, Rel. Min. Joaquim Barbosa). 2. É aplicável às companhias estaduais de saneamento básico o regime de pagamento por precatório (art. 100 da Constituição), nas hipóteses em que o capital social seja majoritariamente público e o serviço seja prestado em regime de exclusividade e sem intuito de lucro. 3. Provimento do agravo regimental e do recurso extraordinário. (RE nº 627.242 AgR, Relator o Ministro Marco Aurélio, Redator para o Acórdão Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 25.5.2017 – destaques acrescidos).

Neste excerto, note-se que, além daquelas outras duas exigências anteriores (ser prestador de serviço público próprio de estado e natureza não concorrencial) restaram fixadas também mais duas condicionantes, quais sejam: i) capital social majoritariamente público e ii) ausência de fins lucrativos.

Estando a empresa estatal jungida a regime jurídico de direito administrativo e público, com capital social oriundo, em sua maioria (com direito a voto), de Ente Público, nada mais razoável que se estendam a ela as prerrogativas relativas à forma de realizar a execução das suas condenações judiciais, prestigiando-se, ainda, o sistema constitucional da proteção à programação orçamentária e financeira, sendo o regime de precatórios um mecanismo de racionalização eficiente em busca de tais objetivos.

O mesmo se diga quanto à razoabilidade (e racionalidade) da previsão de que se impõe, também, a ausência de distribuição de lucros entre sócios, o que, do contrário, desvirtuaria a finalidade almejada pelo legislador constitucional originário quando justamente quis distinguir os dois mundos, traçando nuances próprias para estatais que exerçam diretamente a exploração de atividade econômica e tenham o intuito lucrativo, cuja disciplina se aproximaria muito mais do regime jurídico privado.

Foi justamente a aferição de tais questões que, a título de mais um exemplo, afastou a aplicação do regime constitucional dos precatórios judiciais, por sua vez, da Eletronorte – Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A, em julgamento que restou assim ementado:

FINANCEIRO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PAGAMENTO DE VALORES POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. INAPLICABILIDADE DO REGIME DE PRECATÓRIO. ART. 100 DA CONSTITUIÇÃO. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL CUJA REPERCUSSÃO GERAL FOI RECONHECIDA. Os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas. Portanto, a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. – Eletronorte não pode se beneficiar do sistema de pagamento por precatório de dívidas decorrentes de decisões judiciais (art. 100 da Constituição). Recurso extraordinário ao qual se nega provimento. (RE nº 599.628, Relator Ministro Ayres Brito, Redator para Acórdão Ministro Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJe. 17.10.2011).

Ora, se a Estatal executa alguma espécie de atividade ou serviço que se submeta a concorrência com outros particulares do mesmo ramo de negócios, sem exclusividade, haveria, portanto, subsunção à regra constitucional que exige uma paridade de armas entre tais players, não se justificando um tratamento diferenciado.

O mesmo se diga, destarte, quando existir objetivo dentro da instituição no que pertine a angariar e distribuir lucros e dividendos a seus acionistas, eis que a finalidade lucrativa, aos olhos da Corte Suprema, mais aproxima do que afasta a respectiva estatal do regime jurídico de direito privado, não se revelando razoável, assim, garantir observância de uma prerrogativa que se predispõe vinculada ao regime jurídico administrativo que emerge do sistema dos precatórios judiciais, não direcionada a uma finalidade eminentemente empresarial.

Mais recentemente, outrossim, foi julgada nova ADPF, de nº 556, oriunda do Rio Grande do Norte, desta vez de Relatoria da eminente Ministra Carmen Lúcia, pela qual o assunto foi revisitado, sendo, então, reiterada a jurisprudência que vem cada vez mais vem se consolidando na Corte, conforme se depreende do precedente que restou assim ementado:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. FINANCEIRO. DECISÕES JUDICIAIS DE BLOQUEIO, PENHORA, ARESTO E SEQUESTRO DE RECURSOS PÚBLICOS DA COMPANHIA DE ÁGUAS E ESGOTOS DO RIO GRANDE DO NORTE – CAERN. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. APLICABILIDADE DO REGIME DE PRECATÓRIOS. PRECEDENTES. INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES. LEGALIDADE ORÇAMENTÁRIA. ARGUIÇÃO PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESTA PARTE, JULGADA PROCEDENTE. 1. (…). 2. A Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte – CAERN é sociedade de economia mista, prestadora de serviço público em regime não concorrencial e sem intuito primário de lucro: aplicação do regime de precatórios (art. 100 da Constituição da República). Precedentes. 3. Decisões judiciais de bloqueio, penhora, aresto e outras formas de constrição do patrimônio público de empresa estatal prestadora de serviço público em regime não concorrencial: ofensa à legalidade orçamentária (inc. VI do art. 167 da Constituição), à separação funcional de poderes (art. 2º da Constituição) e à continuidade da prestação dos serviços públicos (art. 175 da Constituição). Precedentes. 4. Arguição parcialmente conhecida e, nesta parte, julgada procedente para determinar a suspensão das decisões judiciais que promoveram constrições patrimoniais por bloqueio, penhora, arresto, sequestro e determinar a sujeição ao regime de precatórios à Companhia de Água e Esgoto do Rio Grande do Norte – CAERN. (Grifos aditados).

Como se depreende, outros pontos que também vêm sendo reiterados e sendo objeto de atenção na Suprema Corte têm a ver com as circunstâncias de as empresas serem controladas e mantidas pela Administração Pública Direta, possuindo, destarte, a característica da dependência orçamentária e financeira, ainda que a receita auferida não seja exclusivamente oriunda do erário.

A esse respeito, mister transcrever passagem do voto condutor da decisão contida no precedente da ADPF 387, tendo o Relator, o eminente Ministro Gilmar Mendes aduzido:

Ademais, o requerente indica que a EMGERPI é mantida por meio de recursos financeiros previamente detalhados na Lei Orçamentária Anual do Estado do Piauí (Lei 6.576/2014), recursos, esses, repassados pelo Estado do Piauí e oriundos da conta única do ente mantenedor. Essa mesma lei previa que empresas estatais dependentes, como a EMGERPI, teriam sua execução financeira e orçamentária concentradas no Sistema Integrado de Administração Financeira do Estado (SIAFEM), da mesma forma que a Administração Direta Autárquica e Fundacional.

Em reforço ao argumento da violação clara e manifesta ao sistema constitucional dos precatórios judiciais por parte das decisões judiciais que impõem métodos de constrição invasivos, próprios dos atos executivos no âmbito privado, constata-se, de igual modo, que haveria, ainda, por via direta, afronta aos postulados inseridos na Lei Maior atinentes ao sistema orçamentário e financeiro.

Realmente, não custa registrar que o intérprete deve adotar em suas decisões parcimônia e cautela, além do que, de igual modo, se valer de conceitos básicos atinentes a este sistema, como receita pública, despesa, orçamento, fiscalização, controle, remanejamento de recursos, categoria programática dentre outros, especialmente em atenção ao comando do art. 167, VI, da Carta Magna, segundo o qual são vedados “a transposição, o remanejamento, ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa”.

Em outras palavras, impõe-se a observância do princípio da legalidade orçamentária, de modo a evitar uma interferência indevida na programação financeira e orçamentária da entidade, resultando em obstáculos difíceis ou mesmo intransponíveis a uma boa e regular gestão.

Uma vez que se trata, na espécie, de empresas estatais dependentes e, em regra, controladas, sua receita, na maior parte ou mesmo totalidade, advém de dotações orçamentárias próprias e específicas do ente mantenedor, destinadas a fazer frente a despesas de pessoal e de custeio, revelando-se os atos executivos em apreço uma verdadeira constrição indevida de verbas públicas, em afronta ao modelo constitucional de organização orçamentária.

José Afonso da Silva, com sua inerente lucidez, leciona com propriedade e maestria sobre o assunto, ponderando:

TRANSPOSIÇÃO. REMANEJAMENTO E TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS. São formas de movimentação de recursos orçamentários, que o Poder Executivo pode efetuar, desde que tenha para tanto autorização legislativa. A Constituição anterior vedava apenas a transposição, sem prévia autorização legal, de recursos de uma dotação orçamentária para outra. O inciso VI do art. 167 é mais rigoroso, porque abrange todos os tipos de movimentação de recursos orçamentários, e não apenas de uma dotação para outra, mas de uma categoria de programação para outra, assim como de um órgão para outro.(…) Pois foi para evitar burla que se tornou necessário o emprego dos três termos, porque, quando se usava apenas transposição, praticava-se outra daquelas formas de movimentação, com o que se frustrava a vedação.[7].

Se nem ao próprio Executivo, portanto, é possível remanejar tais receitas públicas sem a devida autorização legislativa, o mesmo se diga também em relação ao Poder Judiciário, eis que, nas palavras do Ministro Alexandre de Morais, lhe falta possibilidade institucional para avaliar os impactos desses bloqueios e sequestros de verbas sobre a atividade administrativa e a programação financeira do ente.

Imprescindível, assim, ter em mente que a posição defendida há muito tempo no âmbito do Pretório Excelso, atualmente consolidada mediante a prolação de diversos precedentes que convergem com o quanto fora alinhado acima, caminha na direção segura do entendimento de que se a estatal presta serviço público essencial (interesse primário, próprio de Estado), em regime de exclusividade, não concorrencial, e não distribui lucros e dividendos, os atos executivos das decisões judiciais que lhes são contrárias devem obedecer a sistemática dos precatórios (art. 100 da CF/1988), que, a par de não gerar desequilíbrio no mercado, protege a continuidade do serviço público prestado à coletividade.

E não há que se temer a adoção desta sistemática prevista constitucionalmente, garantidora da boa e eficiente gestão administrativa em decorrência da observação de postulados de organização financeira, mormente em vista dos mecanismos de proteção e robustez elencados pela Emenda Constitucional nº 62/2009, que conferiram maior segurança ao efetivo adimplemento dos débitos judiciais.

  1. FERRAMENTAS À DISPOSÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA EVITAR CONSTRIÇÃO JUDICIAL DIVERSA DO SISTEMA DE PRECATÓRIOS.

Sem embargo da patente viabilidade de utilização dos diversos meios processuais postos à disposição da entidade estatal para fins de defender seus interesses e direitos no contexto do processo judicial em que se determine ato constritivo contra seu patrimônio, como a Exceção de Pré-Executividade, os Embargos à Execução ou mesmo os inúmeros recursos de âmbito horizontal ou vertical, cuidaremos, rapidamente, neste tópico, de outros mecanismos que possibilitam a interferência do próprio STF, revelando-se meios mais eficazes e efetivos, aptos a corrigir as distorções porventura ocorridas.

Tais ferramentas devem ser adotadas com a máxima cautela e desde que se façam realmente necessárias, de molde a combater atos de constrição que, em muitas vezes, em decorrência da amplitude e agressividade, possuem mesmo o condão de inviabilizar a gestão de uma estatal que, de repente, se vê na iminência de ter suas contas bloqueadas e seus valores penhorados e liberados em processos judiciais, causando descontrole, desorganização e, por conseguinte, até mesmo a paralisia das relevantes atividades prestadas à coletividade.

Como analisado no tópico anterior, é possível chegar-se à conclusão de que eventuais decisões judiciais que porventura imponham às empresas estatais – desde que tais entidades obedeçam aos requisitos elencados pelo STF – constrição patrimonial por meio de atos executivos comuns como bloqueios, penhoras, arrestos e sequestros estarão, tais atos do Poder Judiciário, rogadas todas as escusas, em evidente afronta ao texto da Constituição da República de 1988.

Com efeito, a par de violação manifesta à sistemática dos precatórios judiciais prevista no art. 100 da Lei Maior, tem-se também inquestionável desobediência ao comando do inciso VI do art. 167 que preconiza o postulado da programação orçamentária e financeira, além de ofensa à independência dos poderes, nos termos do art. 2º da nossa Carta Magna e à continuidade dos serviços públicos (art. 175).

Não há dúvidas quanto ao fato de que todos estes comandos normativos constitucionais carregam um influxo de normas que conferem sustentáculo ao ordenamento jurídico constitucional, sendo esteio do Estado Democrático de Direito e, portanto, afiguram-se preceitos fundamentais, cuja ofensa está a desafiar o ajuizamento de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, nos termos do que prevê da Lei Federal nº 9.882/1999.

Na lição do culto professor e juiz federal baiano Dirley da Cunha Júnior tal ação:

Consiste em uma ação constitucional especialmente destinada a provocar a jurisdição constitucional concentrada do Supremo Tribunal Federal para a tutela da supremacia dos preceitos mais importantes da Constituição Federal. Vale dizer, é uma ação específica vocacionada a proteger exclusivamente os preceitos constitucionais fundamentais, ante a ameaça ou lesão resultante de qualquer ato ou omissão do poder público. [8]

Estando atendidos os requisitos formais e procedimentais previstos na citada legislação, que regulamenta e disciplina a aludida ação de índole constitucional, cabe o manejo de tão importante ferramenta processual pelos legitimados ativos, provocando a atuação da Corte Suprema, que, como vem demonstrando, não se esquiva, muito pelo contrário, conforme foi possível constatar dos diversos precedentes citados neste trabalho, sendo ainda possível mencionar, a título de reforço, as ADPF’s 437 e 405, Rel.ª Min. Rosa Weber, ADPF 420, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, ADPF 114, Rel. Min. Roberto Barroso e ADPF 275, de Relatoria do Min. Alexandre de Moraes.

A seu turno, por se tratar de processo objetivo no âmbito de uma ação de controle de constitucionalidade concentrado, preconiza o §3º do art. 10 da Lei Federal nº 9.882/1999 que os efeitos das decisões alcançadas são vinculantes relativamente aos demais órgãos do Poder Público, incluindo o Judiciário, além de ter eficácia contra todos (erga omnes), alcançando a todos, envolvidos ou não no processo constitucional.

Justamente por isso, o art. 13 da mesma legislação de regência prevê o cabimento da Reclamação Constitucional contra o descumprimento da decisão do C. STF adotada no âmbito da ADPF, de modo a garantir a autoridade das determinações alcançadas pela Corte Suprema, nos moldes do que também garante o vigente diploma processual civil, notadamente o art. 988, III do NCPC.

Não por outra razão o festejado processualista Daniel Amorim Assumpção Neves[9] ensina que, diante da decisão proferida em sede de ADPF, “não podem os juízes que enfrentarem a questão constitucional de forma incidental desconsiderar a decisão judicial do Supremo Tribunal Federal, justamente porque o efeito erga omnes vincula a todos.”

A Reclamação, meio apto à parte interessada – in casu, a entidade estatal que está sofrendo a constrição patrimonial indevida – afigura-se, por certo, um mecanismo sem dúvida eficaz e célere visando a sanear o ato do Poder Público – decisão judicial – que esteja afrontando a decisão do C. STF obtida nas citadas ADPF’s e deve ser utilizada sempre que necessário, obedecendo-se, é claro, os requisitos e condicionantes previstos em sede normativa.

Relevante, pois, que o gestor tenha a exata consciência do problema e busque junto a sua assessoria jurídica o devido respaldo e suporte para acionar os meios legais cabíveis com fins de solucionar o problema enfrentado, evitando atos executivos que venham a tornar difícil ou quase impossível a gestão eficiente da empresa estatal.

  1. CONCLUSÕES.

Consoante os motivos e fundamentos expostos, vimos que há bastante tempo a colenda Corte Constitucional do Brasil vem trilhando um caminho firme e seguro quanto ao tema ora em debate, consolidando o entendimento quanto à sujeição das empresas estatais, prestadoras de serviços públicos próprios de estado, ao sistema de precatórios judiciais previsto no art. 100 da Lei Maior, à exemplo do que ocorre com as Fazendas Públicas, desde que as entidades estejam submetidas a regime não concorrencial e não tenham intuito lucrativo.

Destacou-se também que esta sujeição à sistemática dos precatórios não enseja desequilíbrio no mercado, justamente por não ofender a isonomia com o tratamento junto a outros particulares, haja vista desenvolver a estatal suas atividades em regime de exclusividade, prestigiando-se, por outro lado, a proteção da continuidade do serviço público prestado à coletividade.

Ademais, o regime constitucional dos precatórios, como demonstrado, revela-se um preceito de natureza fundamental, pois, consoante defendido pelo Min. Gilmar Mendes na ADPF 387 “é o mecanismo de racionalização dos pagamentos das obrigações estatais oriundos de sentenças judiciais, ao mesmo tempo em que permite a continuidade da prestação de serviços públicos e, consequentemente, a efetivação dos próprios direitos fundamentais”.

A partir desta constatação, portanto, é de se lamentar profundamente a insistência de alguns julgados, das mais variadas esferas e instâncias, em emitir decisões que desobedecem manifestamente aos precedentes oriundos do Pretório Excelso, ordenando a prática de atos executivos de constrição patrimonial que invadem bens, rendas e direitos das estatais, com bloqueios financeiros e penhoras de valores altíssimos que tem o condão de resultar em profundos danos e prejuízos operacionais, orçamentários e administrativos, podendo mesmo causar, a depender do volume e circunstâncias, até a paralisia das atividades prestadas pela entidade da Administração Pública, o que, em última análise, atinge em cheio o interesse público da coletividade atendida pelo serviço público.

Em se deparando o gestor com situação concreta deste jaez, deve se socorrer das ferramentas legais e processuais adequadas, postas à disposição pelo ordenamento jurídico vigente, notadamente a própria ADPF visando resguardar o preceito fundamental eventualmente violado e a Reclamação Constitucional com escopo de garantir a autoridade da decisão emitida pela Corte Suprema nas ações constitucionais de controle concentrado.

Rogamos, enfim, que se aproxime o tempo em que sequer seja preciso buscar providências junto à máxima Corte de Justiça do país e os respeitáveis órgãos do judiciário simplesmente acatem as decisões proferidas na matéria em apreço, de molde a evitar desgastes, esforços e custos pela movimentação da máquina administrativa estatal em busca de uma correção que se apresenta, além de evidentemente justa, de extrema necessidade para a higidez financeira das Empresas Estatais.

 

REFERÊNCIAS:

MELO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 7ª ed., São Paulo:        Malheiros, 2013.

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo, 27ª ed., São Paulo: Método.

MARTINS, Ives Gandra. Imunidade Tributária dos Correios e Telégrafos, Revista Jurídica, v. 288, 2001. p. 58.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9ª ed., São Paulo: Malheiros Editores.

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição, Salvador: Juspodium, 2011.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil, Volume único, 8ª ed., Salvador: Juspodium, 2016.

[1] Procurador do Município do Salvador, onde exerceu a função de Chefe de Representação da Procuradoria na Secretaria Municipal de Gestão (2009-2019) e atualmente é o Chefe da Especializada Judicial da Procuradoria do Meio Ambiente, Urbanismo, Patrimônio e Obras. Especialista em Direito Processual (UNIFACS) e Advogado, Sócio do Humildes, Pinheiro, Caribé, Marques, Carneiro & Vaz Porto.

[2] Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

  • 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;

[3] Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

[4] Curso de Direito Administrativo, 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p.203.

[5] Direito Administrativo, 27ª ed., São Paulo: Método, p. 75.

[6] Imunidade Tributária dos Correios e Telégrafos, Revista Jurídica, v. 288, 2001. p. 58.

[7] Comentário Contextual à Constituição. 9ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, p. 712.

[8] Curso de Direito Constitucional. 5ª edição, Salvador: Juspodium, 2011, p. 435.

[9] Manual de Direito Processual Civil, Volume único, 8ª ed., Salvador: Juspodium, 2016, p. 1430.