Reequilíbrio econômico-financeiro das concessões públicas em tempos de coronavírus

No início da pandemia, em 26/03/2020, escrevi aqui no Bahia Notícias que dezenas de concessionárias e prestadoras de serviços públicos, independente de repactuação financeira ou garantia prévia de reequilíbrio econômico dos contratos, passaram a espontaneamente prestar apoio ao poder público e investir recursos financeiros, materiais e de pessoas, ajustando, assim, o seu escopo de atuação para assegurar uma pronta resposta no combate à COVID-19.

Passados quase quatro meses, acompanhamos Estados e Municípios decretarem diversas medidas restritivas, a maior parte delas fundamentais para garantir a integridade das pessoas, retardar a disseminação da doença e evitar uma situação de grave colapso do sistema de saúde.

Dentre as medidas mais adotadas no país, estão a proibição de circulação de pessoas, diminuição das linhas e horários de circulação dos ônibus, requisição de estádios de futebol para implantação de hospitais de campanha, utilização de equipamentos públicos outorgados ao particular para finalidades assistenciais diversas da pactuada na concessão, ampliação do escopo de atendimento em unidades de saúde concedidas, além da redução da atividade econômica fruto do fechamento dos shopping centers, comércios e serviços, providências estas que determinaram inequívoca e abrupta queda das receitas ordinárias.

Ademais, o quadro de redução da atividade econômica – e, em muitos casos, de verdadeira paralisia – certamente repercutiu, em maior ou menor grau, na operação inerente a estas concessões, ensejando o efetivo impacto sobre as receitas e/ou despesas dos concessionários, em ordem a afetar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, princípio constitucional previsto no art. 37, XXI, da Constituição Federal de 1988.

Seguindo essa ordem de ideias, já restou pacificado o entendimento de que a pandemia da COVID-19 fugiu a qualquer padrão de normalidade já visto na história recente do país e mesmo em âmbito mundial, sendo evento que caracteriza a chamada “álea extraordinária”, capaz de justificar a aplicação da teoria da imprevisão.

Nesse sentido, vale trazer a baila os ensinamentos do jurista francês, Gaston Jèze, um dos primeiros a discorrer sobre as condições essenciais para a ocorrência e aplicação da teoria da imprevisão no direito administrativo, que desde o século passado dizia ser “preciso que o acontecimento não pudesse ser razoavelmente previsto pelas partes contratantes, senão não há imprevisão (imprevisão quanto ao próprio evento). É preciso que o evento acarrete como consequência o desconcerto econômico do contrato, quer dizer, ocasionar, para o contratante, perdas que ultrapassem todas as imprecisões que poderiam ter sido feitas no momento do contrato (imprevisão quanto à importância das consequências).”

O advento da COVID-19 ajusta-se exatamente à teoria da imprevisão e encontra expressa previsão no art. 65, II, “d”, da Lei nº 8.666, de 1993, aplicado supletivamente à Lei de Concessões.

Destarte, a pandemia do coronavírus restou caracterizada como evento de força maior, conforme o Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU, exarado pela Advocacia-Geral da União e elaborado em resposta à consulta da Secretaria de Fomento, Planejamento e Parcerias, vinculada ao Ministério da Infraestrutura, a respeito da possibilidade jurídica de verificar se os efeitos negativos da crise suportados pelos diversos setores de infraestrutura poderiam embasar o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão (cf. parecer disponível no sítio oficial da AGU: HTTPS://sapiens.agu.gov.br/documento/406894540).

No referido parecer, o Advogado da União e Consultor Jurídico Adjunto, Dr. Felipe Nogueira Fernandes, manifestou-se no sentido de que “a teoria da imprevisão é aplicável aos contratos administrativos, incluindo os contratos de concessão, neste caso respeitadas as suas características próprias e a alocação de riscos prevista explícita ou implicitamente no respectivo instrumento contratual”, concluindo ao final que os concessionários “têm direito ao reequilíbrio de seus contratos quando ocorrerem eventos supervenientes à apresentação de suas propostas cujo risco tenha sido alocado ao poder concedente e que tenham impactado de forma significativa suas receitas ou despesas”.

O Tribunal de Contas da União, na esteira do voto do Ministro Walton Alencar Rodrigues (Acórdão nº 1055/2011 – TCU – Plenário), já pacificou o entendimento de que, “à luz dos princípios que regem os contratos administrativos, sob os quais devem manter-se os ajustes, sob pena de nulidade, fica evidente que a equação econômico-financeira tem o propósito de evitar prejuízos tanto ao contratado quanto aos usuários, no extenso período de execução”.

Também o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da lavra do Ministro Herman Benjamin (REsp 1798728), já reconheceu a aplicabilidade da teoria da imprevisão a contratos administrativos para o fim de restaurar o equilíbrio econômico-financeiro da avença.

O nosso Código Civil, no parágrafo único do seu art. 393, estabelece genericamente que “o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis de evitar ou impedir”, como forma de isentar o devedor pelos prejuízos daí resultantes, se deles expressamente não se houver responsabilizado,

Assim, no caso concreto da COVID-19, evento tido como de força maior, é preciso analisar o conteúdo do contrato de concessão e a previsão acerca da matriz de riscos. A título exemplificativo, recentemente, a Portaria nº 227, de 21 de maio de 2020, da Diretoria-Geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, já prevendo o impacto da pandemia, determinou que seja feita a aferição técnica e jurídica individual dos contratos de concessão de infraestrutura de transporte, no tocante ao cabimento e metodologia do equilíbrio econômico-financeiro, em especial perquirindo “se houve alocação de riscos entre as partes relacionadas de forma objetiva e para identificar e quantificar se houve efetivos danos à concessionária” (art. 2º, parágrafo único).

Impende salientar que tramita no Senado Federal o Projeto de Lei n. 2139, de 2020, que versa sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) das relações jurídicas contratuais da Administração Pública no período da pandemia, que certamente irá trazer luz às controvérsias que se apresentam nesse panorama de anormalidade, disciplinando, inclusive, mecanismos de compensação no âmbito dos contratos de concessão com vistas a preservar ou recompor a sua equação econômico-financeira, de modo a evitar que a excessiva onerosidade imposta às concessionárias (ou mesmo a falência delas) venha a acarretar  a interrupção de serviços públicos essenciais e o prejuízo efetivo aos usuários.

Assim, revela-se indispensável que, tal como a União já iniciou em relação a alguns Ministérios,  os demais Entes Federativos deflagrem imediatamente a discussão processual do reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão vigentes, com uma visão um pouco elástica desses instrumentos, compatível com a situação excepcional ora vivenciada, permitindo a manutenção e viabilidade na execução dos contratos e, por conseguinte, dos serviços públicos prestados com o mesmo nível de qualidade esperado, o que perpassa também pela garantia do retorno remuneratório ao concessionário antes do advento da pandemia.

Por fim, à luz da necessária segurança jurídica preconizada pela Lei nº 13.655/2018 – que modificou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, em especial a necessidade de se considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” (art. 22), rogamos que os órgãos de controle estejam sensíveis para bem compreender o cenário inusitado e de complexidade enfrentado por concessionários e Poder Concedente diante dos impactos deletérios da COVID-19 e, assim, atuem não apenas como fiscal implacável dos gestores públicos, mas sim em absoluta sintonia com todos os atores na busca de soluções razoáveis e na tomada de decisões administrativas que melhor alcancem o interesse público.

*Silvio Pinheiro é sócio do Humildes, Pinheiro, Caribé,  Marques, Carneiro e Vaz Porto Advogados, ex-secretário de Urbanismo de Salvador e ex-presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação